quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Homens do Mar - António dos Santos - 27




Capitão António dos Santos
À procura de impossíveis, lá vou pedindo, telefonando, escrevendo, indo a casas onde nunca tinha entrado e conversando com pessoas com quem nunca tinha conversado. E assim fui falar, depois de já anunciada, com o Sr. Capitão António Tomé Santos. De uma cajadada matava dois coelhos, perdoe-se-me a expressão coloquial, pois ele, simpaticamente, me recebeu e me cedeu alguns dados, dele e, sobretudo, neste caso, do Pai.
Homens arrojados, valentes, corajosos, estes! Verdadeiros heróis!!! Não é que nunca me tinha apercebido que o Sr. Capitão António dos Santos tinha naufragado três vezes, duas delas, seguidas – no Normandie (1941), no Maria da Glória (1942) e no Leopoldina (1947)? Demais para um homem só!... Veleiros algo anacrónicos, de madeira, já antigos, envelhecidos, conduziam a situações destas.
Tive acesso a uma entrevista que o Capitão tinha dado ao jornal Comércio do Porto, a 7 de Novembro de 1934. Já vai distante, mas António dos Santos, à data, já contava uma boa dezena de viagens. Li-a com interesse, achei-a curiosa, enaltecedora dos seus homens, sobretudo, dos de Ílhavo, enternecedora e, espantosamente bem-humorada.
(…) No cais de Massarelos, tendo estado à descarga, o Santa Regina, comandado pelo capitão António dos Santos, oficial sabedor, enérgico, decidido, arcaboiço de lutador dos mares, homem experimentado nas lides da pesca do bacalhau, é na amurada de bombordo do seu navio, que o capitão Santos descreve, com a maior simplicidade, em conversa, a sua viagem deste ano à pesca do fiel amigo (…).
– Têm horas certas de trabalho, os homens?
– Têm, mas, quando é preciso aproveitar a maré, aproveita-se. É para benefício de todos…
– E demais, como é sempre dia… na Gronelândia (…).
Uma faina de mil diabos, esta vida! Ninguém imagina os trabalhos que a gente passa, quando comem, regaladamente, uma posta de bacalhau assado ou um prato de bacalhau à Gomes de Sá…
– As montanhas de gelo são lá frequentes, capitão?
– São, sim, senhor. Os icebergues, frequentes e perigosos (…). Vê acolá aquela racha? – e aponta uma enorme fenda aberta no cobre do casco. Aquilo foi, só, de roçar por um campo de gelo. Uma manobra demorada demais para o evitar.
– E como procurar evitar esse perigo?
– É conforme. Em último recurso, entregamo-nos à Providência – concluiu o capitão – que desta vez, como de tantas outras, foi a nossa boa protectora
– É certo os esquimós visitarem os vossos navios?
– Eu não os vi, pois pesquei a 64 graus. Mas, aos que fundeiam mais para o Norte, a 68 graus, têm aparecido, a trocar peles de animais por aguardente. O meu colega do Viajante 2º, que pescou pelas alturas da ilha de Disko, teve este ano, a bordo, a visita de seis mulheres esquimós.
E, num olhar malicioso, num desabafo de inveja, o capitão rematou:
– Que rico dia de pesca! Uma marésada assim, não a apanha cá o velho…
– É toda de Ílhavo, a tripulação do Santa Regina?
– Não. Trago também homens da Figueira, da Afurada e da Póvoa…
Verdadeiros heróis! – exclamou, entusiasmado e orgulhoso, o capitão. E, depois com desalento, concluiu:
– Heroísmo ainda tão desconhecido e mal avaliado, quando o Mar lhes não abre a sepultura, espera-os uma velhice cheia de necessidades e misérias…
– E nos dias bonançosos e noites serenas, que fazem os seus marinheiros?
O capitão não responde. Fica pensativo, olhos fitos para além da barra. Mas, compreendendo-lhe o seu pensar, ouvimo-lo dizer:
– Nas noites luarentas almas resignadas dedilham a guitarra, a recordar a sua terrinha tão longe adormecida, tantas milhas distante dos seus olhos saudosos… Nas horas vagas de brisa fagueira, ou calmaria podre, dão largas ao seu instinto artístico. E à revessa do castelo da proa, pegam num madeiro, num canivete, modelam um casco, aparelham-no num requinte de gosto e apuro, sem a mínima falta dum pormenor e das suas mãos, cortadas da linha da zagaia, gretadas da salga e dos ventos glaciais, saem essas embarcações miniaturas, verdadeiras maravilhas de arte, que são o pasmo e encanto de quem visita a sala marítima do Museu de Ílhavo.
Estava terminada a visita. Que os trabalhos da descarga exigiam a presença do capitão. E, já na prancha do cais ainda lhe ouvimos dizer, com aquela franqueza rude, característica da gente do mar:
– Apareça mais vezes. Os amigos são sempre bem-vindos.
Um pouco longa para intróito, mas, mesmo assim, foi decepada, quando achado conveniente.
O Sr. Capitão António dos Santos nasceu em Ílhavo em 6 de Janeiro de 1897. Filho de Tomé dos Santos e de Josefa da Silva, casou com a Senhora D. Ermínia Rocha, de quem teve os filhos – Maria Emília Rocha Santos e António Tomé Rocha Santos.
Possuía a cédula marítima 8399 passada pela Capitania do Porto de Aveiro, sem data.
Teria ido cedo para o mar como muitos outros dos seus conterrâneos, pois esse mar, esse mar danado, corria-lhe nas veias.
Consultados os primeiros jornais, em 1928, foi piloto do lugre Vega, que era o Altair e que viria a ser o lugre Vaz, comandado pelo Capitão José Cândido Vaz.
Nas campanhas de 1929 e 30, foi capitão do lugre Ilhavense 2º.
Nos primeiros arquivos marítimos credíveis, coincidentes com os dados desta entrevista, surge o Sr. Capitão António dos Santos, no comando do lugre-escuna Santa Regina, desde 1934 a 1937, inclusive, da praça do Porto. Em 1936 e 37, foi seu piloto, o também ilhavense João Maria da Madalena. Foi o Capitão Santos que levou pela primeira vez, ao mar, o famoso Zé da Pardala, neste lugre-escuna, possivelmente na campanha de 1935. Vide Memórias (1927-1983), de José da Silva Cruz. Edição de Autor, 1986, p. 15 a 24.
 
Nas safras de 1938 a 1941, continuou capitão, mas, agora do lugre-patacho, de madeira, Normandie.
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O lugre-patacho Normandie
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Este foi o navio francês Normandie III, construído em Shelburne, Canadá, adquirido pela Empresa de Pesca de Portugal, Lda., desta vila, em hasta pública, que iniciou a sua actividade em 1935. O ano de 1941 teria sido fatídico para o navio, pois, no dia 30 de Maio, caíra sobre os bancos da Terra Nova, um forte temporal, do qual resultou ter sido varrido ao mar, de bordo do Normandie, o pescador António Francisco Coentrão de 28 anos, natural de Caxinas, Vila do Conde.
Segundo notícia de O Ilhavense de 20 de Setembro de 1941, no dia 7, naufragou, com água aberta, como já referimos, propriedade da Empresa de Pesca de Portugal, Lda., de que era gerente o Sr. Francisco António de Abreu. Comandado pelo experimentado homem do mar, António dos Santos e pilotado por Manuel Machado dos Santos (Praia), estava com o carregamento completo. A tripulação foi toda salva e recolhida a bordo do lugre com motor, de madeira, Ana I que a terá trazido a Aveiro.
Foram também seus pilotos, António dos Santos Labrincha (38), Belarmino Ascenção de Oliveira (39) e José Estêvão da Maia (40).
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Não terão sido excessivas, para uma só pessoa, tantas tormentas, inimagináveis?
No ano seguinte, exactamente o de 1942, em tempos de guerra, aceitou pilotar o lugre Maria da Glória, um pouco mais recente, liderado pelo capitão Sílvio Ramalheira. O Maria da Glória, ex-Portugália, construído na Gafanha da Nazaré em 1921, tomou este nome, na campanha de 1927, então propriedade da Empresa União de Aveiro Lda.
Afundado em 5 de Junho de 1942 por um submarino alemão, em viagem para os Grandes Bancos, constituiu uma das maiores tragédias que assolaram a nossa vila maruja. Dentre os 44 tripulantes, apenas se salvaram 8, em condições sobre-humanas, em dois botes carentes de tudo. E António dos Santos foi um dos que se salvou.
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 O lugre Maria da Glória
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E agora? É caso para perguntar… A fé é que nos salva – pensa o povo e assim pensara o ex-piloto. O susto fora tão grande que, na sua aflição, António dos Santos prometera ir ao Santuário da Nossa Senhora de Fátima, todos os anos, a pé, o que vinha cumprindo desde aquele terrível acontecimento, já lá iam dez anos.
Mas não esmorecera e o apelo do mar e o sustento da família chamavam-no com fervor.
No ano seguinte, na campanha de 1943, tornara-se capitão do lugre de madeira Leopoldina, pertencente à praça da Figueira da Foz. O Leopoldina tinha sido construído em Caminha por A. D. dos Santos Borda, em 1902, e fora propriedade de Manuel Moreira Rato & Filhos, de Lisboa, e de um grupo de sócios figueirenses. Em 1906, tornou-se propriedade da Lusitânia – Companhia Portuguesa de Pesca, então formada.
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 O lugre Leopoldina
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Entre as campanhas de 1943 e 1947 (inclusive), comandara-o o Sr. Capitão António dos Santos, até lhe sentir o peso e o perigo do seu afundamento, com água aberta, no Virgin Rocks, em 1947. Em 1943, pilotara-o Bernardino José G. Barbosa e em 1944, o ilhavense Benjamim dos Santos Marcela, Pardal.
Na campanha de 1948, transferira-se para capitão do lugre com motor Trombetas, da mesma empresa armadora.
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Ainda com forças para enfrentar o mar, António dos Santos embarcou de capitão, na safra de 1949, no lugre de madeira Paços de Brandão, da praça do Porto. Construído na Terra Nova, fora reconstruído em 1923, em Vila Nova de Gaia para a firma Veloso, Pinheiro & Cª., Lda. Acabou por ter o seu fim, com água aberta, em 1951, já sob o comando de João André Alão. Pilotara-o nessa viagem, o ílhavo António Nunes Júnior, o Rão.
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 O lugre Paços de Brandão
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Mais do que com razões para sentir na pele a dureza da vida de mar, o Sr. Capitão António dos Santos, muito estimado por todos os seus colegas, depois de três anos em terra, de recobro, partiu cedo e repentinamente, com 56 anos, em 19 de Outubro de 1953, tendo estado a bandeira do Sindicato dos Oficiais, a meia-haste, durante três dias.
A biografia marítima deste nosso Homem do Mar, quase que se poderia intitular, na senda dos naufrágios… três foram eles, e dois completamente seguidos.
 
Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência do filho

Ílhavo, 20 de Novembro de 2016
 
Ana Maria Lopes
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